O que realmente importa em Dogville não é a questão do moralismo em si. Não há que se pensar que o filme quer nos mostrar que somos capazes de reverter os processos de injustiça. A própria concepção de justiça é colocada em questão através da construção artística proposta pelo desenrolar do filme.
O filme tem passagens lentas que se desenvolvem num cenário que nos retira de qualquer possibilidade de identificação. O diretor, Lars von Trier, quer nos colocar totalmente de fora da história, impedindo a construção de processos identificatórios. Somos apenas observadores daquela pobre cidadezinha onde tudo pode ser visto das casas que não tinham teto, não tinham nada...
A construção estética do filme nos coloca numa consciência imediata de ficção, e, desde o início, nos colocamos como investigadores daquela sociedade. Vemos uma moça, Grace, perseguida por algo que desconhecemos, sendo socorrida por um rapaz de supostas boas intenções, Thomas Edison Jr, um filósofo que quer comprovar sua teoria de que as pessoas têm dificuldade de aceitar novas situações. Ele propõe que a moça se esconda em Dogville, uma cidade muito pequena e pouquíssima conhecida; sua missão será que todos a aceitem lá e que ela possa viver sua vida tranquilamente.
Tom não apenas possui um bom senso de justiça como é um grande estudioso das questões morais, sendo o conselheiro de sua cidade em tais assuntos. Para ele, era questão definitiva a acolhida da moça, mas precisava ainda convencer os habitantes de Dogville e, apesar da dificuldade inicial, acaba por conquistar seu intuito.
Grande parte do filme nos leva a acreditar na aceitação da moça pelos habitantes de Dogville. Todos a adoram, pois ela era uma nova ajuda aos poucos afazeres do lugar. Tudo parece bem, apesar de não saberem de onde esta moça provém ou que ela fez no passado.
As coisas então começam a mudar com a chegada da polícia na pouca visitada Dogville a procura da moça. O sacrifico de mantê-la não valia a pena se fosse para ter a polícia ali, desconfiada dos honestíssimos habitantes de Dogville. Porém Tom, conselheiro da cidade, convence seus compatriotas de que ajudar Grace era necessário. Não podiam expulsá-la como um cão. Todos, então, resolvem atender os suplícios do rapaz, mas com uma exigência: ela deveria trabalhar mais em prol da cidade, assim pagaria pelo sacrifício que estavam lhe fazendo.
Grace então é explorada, maltratada de todas as formas que uma pessoa poderia ser. O filme nos leva ao asco com as barbaridades que aquela pacata cidade fora capaz de cometer contra uma pessoa. Ela foi estuprada, humilhada, enganada, mas tudo dentro do bom senso da comunidade, que apenas exigia o preço da proteção fornecida.
Tom, já apaixonado pela moça, começa a refletir mais sobre tais sacrifícios e supostamente a ajuda a fugir, mas o plano não dá certo e Grace fica então acorrentada a um grande peso, para que não fuja mais da cidade. Tom concorda com a atitude de sua comunidade enfim, quando Grace se recusa a lhe dar prazer sexual como os outros homens da comunidade também faziam. Ele reflete que uma discordância em relação às atitudes de seu povo colocaria sua posição de pensador por terra, teria de condenar a todos, acabar com a cidade e se assim ocorresse não poderia mais ser conselheiro de cidade alguma. Mais fácil era acreditar que Grace deveria estar acorrentada para seu próprio bem, pois, para ela, sair de Dogville seria um risco.
Deste quadro construído por Von Trier vemos claramente que a construção de valores depende de quem tem o poder de construí-los e são aqueles que os constroem que escolhem quem serão os condenados.
Mas para a sorte de Grace seu perseguidor a encontra em Dogville, após Tom tê-la denunciado, e é precisamente neste momento do filme que percebemos que aquela ficção a nós mostrada nada mais é que um retrato universal de nossa forma de viver em sociedade. A estilização do cenário é justamente para que a ficção nos seja mais perceptível, para que ela nos leve de forma definitiva ao nosso real.
O perseguidor da moça era seu pai, chefe de um grupo de gângsters. O pai de Grace representava para ela o uso da força para exercer uma justiça humana que ela considerava cruel. Ela apenas fugia da maldade, pois acreditava que os homens podiam ser bons . Em toda sua estadia em Dogville, perdoou seus carrascos por acreditar que eles apenas faziam aquilo por suas vidas serem difíceis. Seu pai a alerta de que isso é hipocrisia, pois perdoar os outros para estar no papel do bom é única e exclusivamente para colocar o outro no papel do mal, e nós querermos estar no papel do bom, para o outro restar no papel do mal nada mais é que maldade nossa...
Em Dogville percebemos que a dicotomia do bem e do mal tem de existir na concepção humana. Dar a cada um o seu papel naquela peça teatral é de fundamental importância, a questão é simplesmente quem tem poder para ditar tais regras. A moça percebeu que estar fora do poder para fazer o papel de má era algo que não desejava. Se era para cumprir o papel de má em prol do bem social melhor que fosse no poder, assim poderia ter o controle do que era melhor para as pessoas.
Pensou logo que todos deveriam ser mortos, pois a existência de Dogville era prejudicial às outras cidades. A cidade não era capaz de dar exemplo. Matar a todos e salva apenas o cachorro da cidade. Por uma razão óbvia o espectador se regozija com o massacre...
Na sequencia do grand finalle o espectador está em choque e o diretor imediatamente nos leva ao golpe da realidade através de fotos de casos que sabemos serem reais. Imediatamente nos indagamos: qual o papel que exercemos em nosso teatro da vida real?
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