segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Literatura Quinhentista, sociedade e psicanálise


O séc. XVI viveu uma literatura clássica na qual o homem era entendido como um ser de razão, dotado de grande potencial de conhecimento e de saber, da mesma forma como os gregos já haviam dito. Mas na literatura quinhentista também podemos encontrar registros de um homem fora de sua perspectiva racional, um homem animal. Esse homus foi pintado por autores que quiseram descrever o Novo Mundo recém-descoberto, através de uma mistura de sentimentos de admiração e estranhamento. O homem não civilizado é motivo tanto de deslumbramento quanto de ojeriza, fato que a psicanálise social desenvolvida por Freud é capaz, em certa medida, de fornecer uma explicação.
Um dos primeiros olhares europeus ao bicho homem recém-descoberto foi a Carta de Pero Vaz de Caminha. Nas linhas poéticas de Caminha visualizamos um índio que é admirado por sua condição natural pela expressão de um desejo ao paraíso perdido. Aqui podemos perceber que a ausência de racionalidade não é vista como algo negativo ao homem, muito pelo contrário. Assim como entende Montaigne, em Dos Canibais, a simplicidade natural é vista como a mais preciosa maneira de se alcançar a informação objetiva, por ser desprovida de influências alheias, de cultura, que forma o homem e que precisa ser exposta a fim de que uma interpretação seja valorizada. Em Caminha o índio é aquele ser inocente, sem preconceitos com a nudez ou qualquer outro moralismo, pois não necessita de regras que o tolha em seu cotidiano. Os índios são os bons selvagens, vivendo em felicidade perfeita sobre a terra, nas palavras de Montaigne. Para esse filósofo francês, os homens do novo mundo resumem sua moral em dois pontos: valentia na guerra e afeição por suas mulheres.
A moral guerreira dos índios, explica Montaigne, estava em ser valente, algo extremamente explorado no romantismo brasileiro. As conquistas em si não tinham importância e nem eram o mote da guerra. A bravura do vencedor e do vencido era aquilo de maior valia, tanto que comer o inimigo valente de guerra significava provar do gosto da própria coragem. Montaigne faz questão de explicar que o canibalismo indígena, apesar de ser brutal, possuía um significado dentro da perspectiva ética estabelecida nesse povo, diferente dos horrores descabidos cometidos pela Santa Inquisição. Na psicanálise social freudiana, descrita em Totem e Tabu, podemos perceber que o ritual canibal e Igreja Cristã estão muito próximos, unindo com muita facilidade o homem selvagem e o homem civilizado.
Nesse ensaio Freud relata que a sociedade se forma a partir de um assassinato. A horda humana primitiva era dominada por um macho alfa, detentor das fêmeas, que expulsava violentamente todos os machos que quisessem disputar e assumir seu lugar de chefe no bando. Porém houve um momento na história em que os machos expulsos retornaram para matar o chefe e posteriormente dividiram a posse das fêmeas; esse foi o primeiro ato de solidariedade humana, surgido de um crime e do desejo egoísta de possuir as fêmeas. O lugar do chefe morto restará vazio e representará o lugar simbólico do pai que será adorado, pois é um lugar que representa todo o prazer, e também odiado, pois inatingível pelos filhos que têm que manter o laço solidário. Assim é a partir desse assassinato que a Lei irá surgir junto com o social. O pai simbólico é o legislador que proíbe a consumação do prazer para o social assim se fazer possível. Porém o homem sempre viverá o anseio de estar no lugar desse pai, de transgredir a lei de formação do social, e, num nível simbólico, revivem isso de várias formas. O homem primitivo reproduz o assassinato do pai primevo no ritual canibal. É no consumo de todos da carne e do sangue do pai morto que podemos viver o desejo de ser o chefe através da identificação produzida pela ingestão de uma parte do corpo do ser adorado. Desta forma, consumir a carne do herói, aquele que nem a lei da natureza é capaz de subjugar, é como ser o próprio herói.
O ritual canibal, irá explicar Freud, será revivido em outras formas simbólicas e a mais forte delas vivida pelo mundo Ocidental foi sem dúvida o banquete da Santa Ceia Cristã na qual comer o corpo e beber sangue de Cristo significa se identificar com o próprio pai. Montaigne não estava de fato errado quando diz que as crueldades do canibalismo não eram piores que as crueldades das mortes da Santa Inquisição em nome Deus. O homem vive esse dilema: em permanecer no social quando reconhece o Outro ou se afastar do social quando deseja assumir o lugar do pai e eliminar o Outro, numa postura narcísica e de onipotência de pensamento. O homem europeu cristão se via como o grande pai de todos os povos e, portanto, incapaz de reconhecer o Outro. Se em Caminha e Montaigne temos o europeu cristão que admira o bom selvagem no desejo de reviver a Idade de Ouro, quando o homem animal apenas era instinto e prazer e não havia a Lei como veto do prazer, temos também um literatura que estranha o índio em sua barbaridade – mesmo porque para Freud o estranho é aquilo que um dia foi familiar.
O estranhamento do europeu cristão ao índio pode ser aqui representado por Pero Gândavo em seu Tratado da Terra do Brasil. Gândavo descreve o índio como um animal que vive bestialmente. Há em seu discurso um claro desprezo pelo homem que não é regido por lei alguma e que por isso mesmo deixa de ser homem; é na verdade um bicho na natureza. Porém o desprezo de Gândavo não o deixa perceber que de alguma forma os índios já viviam em sociedade, logo possuíam já um padrão de moral ainda que outros níveis simbólicos. Para este autor os índios não tinham nem Fé, nem Lei, nem Rei o que significa dizer que os índios não possuíam a Fé, a Lei ou Rei da cultura do cristão ocidental, por isso a incapacidade do autor em se identificar com esse povo, que vivia outros padrões representativos do social descritos pelo próprio Gândavo, apesar de não reconhecido por este. O chefe da tribo, o ritual canibal, a bigamia, o ideal do guerreiro, que não teme a morte, não é visto como um estabelecimento cultural, mas como anticivilidade, assim como muitos outros povos vêm o Outro como bárbaro – palavra grega criada para identificar o estrangeiro – apenas por não serem capazes de alguma identificação.
Vemos assim que o homem racional do classicismo era na verdade um grupo de homens que se acreditavam o Grande Pai de todas as nações. O grande ideal de racionalidade do mundo ocidental, que se perpetua por muitos séculos, nada mais era que uma postura egocêntrica do próprio homem em querer assumir o lugar do Pai. A razão no lugar de Deus para a vitória do Homem-Deus desbravador dos mares e com uma grande missão colonizadora. O nome de Deus é então utilizado para cometer inúmeras barbáries contra o Outro em nome da vitória do Ego. Estranhar ou admirar o Outro nada mais são que posturas de não identificação na incapacidade de reconhecer o Outro em sua peculiaridade.
 Freud no século XX veio para dar mais um golpe em nosso narcisismo ao dizer que nós não somos donos de nossa própria sanidade. Ao questionar a razão, se torna mais um intelectual que tira novamente o homem de um dos muitos de seus tronos – assim também o fez Copérnico e Darwin. Cabe agora sabermos se haverá um próximo substituto para esse lugar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário