sexta-feira, 17 de abril de 2009

Literatura e Psicanálise: a desligação, André Green


· O triângulo literário e a psicanálise

Green manifesta seu interesse em explicitar os efeitos da psicanálise na literatura, diante de uma difundida ideia de morte desta. Para ele o tema literatura-psicanálise nunca foi tão abordado como o é hoje na qual não só a literatura mas também a psicanálise dão sinais de agonia.
Mostra disso é que a psicanálise parece estar mais ligada à literatura da fase anterior aos sinais de seu desaparecimento que a de agora, mesmo sendo latente a presença dos estudos psicanalíticos nos três lados do triângulo de qualquer obra literária: lado do escritor, lado do leitor e lado do crítico.
Para o autor “o efeito da psicanálise sobre a literatura pode ser o resultado quer do saber, quer da verdade, isto é, da prova da experiência da psicanálise”[1] e, continua afirmando que o saber psicanalítico não pode ocupar o lugar da formação na prática da psicanálise. Este posicionamento acaba por afetar apenas um lado do triângulo literário dito alhures: o crítico, que é, por excelência, escritor-leitor e leitor-escritor.
O crítico psicanalista deve conhecer a prática psicanalítica, submetendo-se à análises para conhecer seu inconsciente. A partir daí ele poderá falar do inconsciente dos “outros” através de um saber que conterá algo de verdade (experiência)

· O poder interpretativo

O poder interpretativo de um analista é específico e depende, para sua confirmação, do analisando que deverá dar continuidade ao processo analítico. Assim, conhecer os caminhos que levou o analista a dada interpretação, depende de algo que nos é, a cada um, impossível, pois seria como ser o próprio analista, que detém um saber teórico e um saber de prática como analisando.
A um crítico psicanalista não cabe fazer análises textuais apenas detentor de um material teórico de um método crítico. Ele também é analista, assim como é escritor e deve possuir a experiência como analisando, sob pena de trabalhar com uma teoria da qual sempre terá desconfiança.

· A desligação

O psicanalista diante de um texto literário o escuta como a um analisando; faz uma leitura flutuante. Assim como na escuta flutuante, não há nessa leitura um desleixo, mas sim uma atenção voltada ao processo primário (inconsciente) que está ocultamente presente no processo secundário (consciente do texto) através de uma ligação. O texto literário é ficcional e, portanto, governado pelos desejos (fantasias) e o analista reage ao texto como uma produção do inconsciente. “(...) a partir dos vestígios (traces) que permanecem abertos a seu olhar-escuta, não lê o texto, ele o desliga. Quebra a secundariedade para encontrar, aquém dos processos de ligação, a desligação que a ligação encobre”[2]
O analista busca núcleos de verdades no texto e estes perpassam não só pelo delírio da produção do escritor mas também pelo delírio do próprio analista que se torna o analisando do texto. A interpretação do texto é a interpretação do efeito do texto sobre o seu inconsciente. Daí a necessidade apontada por Green do crítico que tenha vivenciado a análise. O conhecimento do seu inconsciente afeta o delírio da interpretação psicanalítica.
O escritor-analista procede a uma nova ligação com a construção de um texto interpretativo, porém tal ligação é diferente da realizada na obra ficcional, esta visava ocultar. No texto interpretativo são elucidados núcleos de verdade da obra literária que queriam ser ocultadas, havendo a perda do mistério literário.

· Ler e escrever
De maneira geral, Green trata o desejo presente na obra literária no ato de ler e escrever. O que nos levar a ler é “a busca de um prazer pela introjeção visual que satifaz uma curiosidade”[3] No caso da literatura o prazer está ligado ao efeito emocional provocado pela obra no leitor, é a escoptofilia. A leitura, diz Green, se prende ao voyeurismo. Este perpassa necessariamente pela escrita. O prazer de ler se centra na não-representatividade da escrita que proporciona a atividade representativa do leitor. Ler é ver. E tal visão não está no texto, está no leitor que passa a ser olhado pelo texto. “A ausência de representação do texto conduziu o leitor a ligá-lo a uma cadeia de representações, que é sua e não do texto, ao mesmo tempo em que ligou os caracteres tipográficos para decifrá-los”[4]
O escritor ao produzir um texto literário visa apenas exibir o texto, o escrito. As suas representações do pré-consciente são ocultadas e das do inconsciente recalcadas. A não-representatividade do fantasma inconsciente duplica-se da não-representabilidade da escrita. Assim, explica o autor, nos dois extremos do processo da escrita (fantasma inconsciente e texto) a representação é abolida. Porém nesse processo sempre restam vestígios. Quando o significado do inconsciente passa para o significante resta os traces freudianos presentes na escrita.
A escrita é um fetiche necessário tanto ao escritor quanto ao leitor. Este e aquele buscam uma representação num espaço metafórico. O escritor busca a sua representação na representação do leitor, este busca a sua na do escritor. Porém a escrita na modernidade teve, na atividade representativa, modificações substanciais.

· As transformações da escrita

Green aponta que o padrão de representação da escrita clássica muda na escrita moderna. A atividade do escritor que oculta as representações do pré-inconsciente ( a que por sua vez tenta ocultar as representações do fantasma inconsciente ) e do leitor que visa recuperar tais representações (permitindo a identificação das representações do inconsciente através dos vestígios) é algo que ocorreu preponderantemente nas obras do passado.
Na obra moderna tem ocorrido a ruptura da ligação entre o processo primário e processo secundário pelo próprio escritor. Este tem se utilizado de um recurso de escrita muito mais próximo do fantasma inconsciente em seus aspectos menos representativos ou, em outros casos, provoca um esvaziamento da remissão à representação na escrita. “Assim, duas vias se abrem: a formulação inconsciente em seus aspectos mais violentos, menos discursivos, mais selvagens e o processo do pensamento escrevente, como se pensar e escrever se tornassem uma única e mesma atitude”[5] Estas duas posturas têm em comum o fato de terem suprimido a dimensão da figurabilidade; e a crítica psicanalítica, diante dessa nova postura, não pode continuar a usar o método freudiano. Cabe aqui uma modificação dos procedimentos de análise.

· O retorno da representação

A escrita moderna não quer mais se deixar prender à representação, porém o destino da escrita é representar. “Escrever coloca-se entre a não-representabilidade da escritura e sua inevitável representação”[6] “ Se a escrita visa ao extremo despojamento diante da representação, escrever permanece inelutavelmente ligado a representar. Pois a representação não se opera apenas no nível dos traços da materialidade dos signos mas também no da representação do sentido”[7]
Inscrever os traços do inconsciente ou decifrá-los é ainda usar representações, mesmo quando se queira deixá-la de lado. Assim não se pode querer renunciar ao papel da representação na literatura (ainda que não seja da realidade externa, mas da psíquica) sob pena de declarar-se sua morte.
A literatura não pode ser científica ou filosófica, ela trabalha no campo da ilusão e é nesta seara que está a multiplicidade de possibilidades da representação. Dir-se-ia que o papel da psicanálise em desvelar representações literárias fez com que esta quisesse abandonar o campo da representação, mas é apenas uma hipótese do autor. Para ele é fato o diferencial existente na escrita moderna. Se haverá morte da literatura ou uma reestruturação da representação apenas o tempo dirá.


[1] GREEN, André. Literatura e Psicanálise: a desligação. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. pág. 224


[2] Ibid. pág. 230
[3] Ibid. p.234
[4] Ibid. p.236
[5] Ibid. p.240
[6] Ibid. p.245
[7] Ibid. p246

2 comentários:

  1. Ola, gostaria de saber de onde tirou esse texto. Estou precisando usa-lo, mas preciso de referencia.
    Agradeço se puder responder.
    Luanza P.

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  2. Nossa, que pecado. A referencia está logo ao final do texto. uhauahaua
    Obrigada.

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