sexta-feira, 22 de maio de 2009

Cinema e literatura em Abril despedaçado

Abril despedaçado, grande sucesso produzido pelo cineasta Walter Salles, é uma mostra digna da atual qualidade do cinema brasileiro. Indicado a vários prêmios, inclusive o Globo de Ouro 2002 de melhor filme estrangeiro, a obra de Salles, apesar de estar ligada a aspectos do Cinema Novo da década de 60, possui uma construção peculiar digna de nota.
A película apresenta-nos a intrigante história de Tonho, filho do meio da família Breves, que é impelido pelo pai a vingar a morte do seu irmão mais velho, vítima de uma luta ancestral entre famílias pela posse da terra. Tal enredo teve como mote de inspiração o livro homônimo de Ismail Kadaré, autor albanês; uma relação entre literatura e cinema que ocorre na excelência artística definida por Alfredo Bosi: a arte como construção, conhecimento e expressão.
A construção parte do romance albanês. A vendeta, típica da região do Rrafsh nas montanhas albanesas, é o elemento de conflito da história retratada por Kadaré. O jovem Gjorg Berisha se vê obrigado a vingar a morte de seu irmão, fruto de uma briga secular entre as famílias Berisha e Krylqyg. O Kanum, código do Rrafsh, determina não apenas a obrigação de vingar o sangue derramado como também todas as peculiaridades do quotidiano montanhês. A não intervenção estatal nas relações daquele povo marca o isolado ambiente montanhês de um tom mítico; tanto que o civilizado casal Vorps, ao subir às montanhas, chega à conclusão de que “o Rrafsh não fora criado para os simples mortais”.
No livro, fica clara a força do isolado ambiente montanhês na movimentação das personagens. Gjorg não quer realizar a vingança, pois teme a consequente morte dos gjaks (aquele que mata na concretização da vingança). Apesar de fantasiar com a inexistência do misterioso Kanum, chega sempre à conclusão de que este código não é apenas necessário, mas essencial à existência dos clãs da montanha, e, mesmo desejando viver, cumpre o seu destino, dando continuidade à vendeta.
Salles, antes de tomar a decisão definitiva em adaptar Abril Despedaçado, realiza uma profunda pesquisa sobre as guerras de famílias no Brasil. Esses conflitos, geralmente conduzidos por latifundiários, acabaram definindo as fronteiras de alguns territórios do sertão nordestino, como é o caso do Sertão dos Inhamuns, no Estado do Ceará, palco da guerra entre as famílias Montes e Feitosa na primeira metade do século passado, como explica o cineasta em site dedicado ao filme. Com o conhecimento do material de pesquisa ele parte para a adaptação, momento na qual se revela todo o seu potencial expressivo.
A ausência do estado também marca a realidade do sertanejo. O ambiente árido e isolado da civilização determina personagens títeres do destino. A dureza climática e o isolamento são percebidos também na ambiência gelada das montanhas retratadas no romance de Kadaré.
Concomitantemente ao romance e ao filme, se faz, portanto, o elemento onipresente e cíclico da SECA, a primeira gelada e a última escaldante, o que evidencia o caráter trágico de ambas as obras. Trágico no sentido de que os personagens dessa ciranda narrativa estão impelidos inexoravelmente ao desfecho a eles reservado pelo destino, sendo este definido pela figura cega da “Moira”, que dá a cada um o seu quinhão, e evidenciado pelo “Oráculo”, o olho que, apesar de cego às aparências falseadoras da realidade empírica, enxerga plenamente a essência das coisas e o caminho de cada um já previamente traçado. Destinos, por conseguinte, marcados em sua essência pela SECA: de afetividade, de humanidade, enfim, de possibilidades outras senão as que diminutamente se vislumbram em um cenário que frontalmente o avesso do que é plural e abundante.
Entretanto, diferentemente da irreversibilidade trágica trabalhada Ismail Kadaré no campo literário, Walter Salles oferece uma possibilidade de libertação, na figura de Pacu, narrador-personagem da trama cinematográfica. A “estética da violência” de Glauber Rocha, principal representante do Cinema Novo brasileiro, e o ambiente sertanejo, tema típico dessa concepção de cinema, são inseridos, porém como elementos determinantes à ruptura de um destino fatalista.
Tonho cumpre todos os rituais de vingança determinados pelo costumes locais, entretanto, diante da sentença decretada pelo avô - vale ressaltar, cego - do personagem que foi vítima da vingança, decide ouvir a voz que representa a Razão, a Reflexão, e que ecoa daquele que é o mais novo, o menino, Pacu, que justamente por ser novo, tanto no sentido lógico como cronológico, representa a mudança, a ruptura, enfim, a subversão.
Tonho desperta pela voz da Razão para não ter sua vida despedaçada, moída como cana pela implacabilidade do destino e, consequentemente, do Tempo marcado pela “bolandeira”, assim como Gjorg Berisha, em antes e depois do assassinato. Pacu acredita num mundo fantástico e poético, onde toda a alegria é possível. Ao se colocar no lugar de seu irmão num destino que parecia irrenunciável, ele abre a possibilidade de mudança, de ruptura.
O personagem Pacu reflete uma intensa densidade poética e ao mesmo tempo reflexiva. Nele podemos creditar o símbolo da possibilidade. O filme de Salles, como ele próprio defende, mostra-se universal e fabular, já que sua mensagem é atemporal. A cena de Pacu, construindo uma nova história, a de seu irmão e a de sua imaginação infantil, provoca uma intensa cartasis no expectador, e demonstra a grande influência que a racionalidade platônico-socrática, ou seja, da emancipação através da Razão e da Problematização exerceu nas tragédias pós-Sófocles, caráter este que deixou marcas indeléveis na Literatura e na Filosofia Ocidental.
O filme, muito mais do que mostrar a difícil relação do homem e da sociedade com a morte, fecundamente trabalhada por Kadaré, traz o diálogo entre angústia e ação. O homem é um ser de relação social dialética. Se a sociedade o produz, ele também a transforma, e assim o faz através da Razão simbolizada em Pacu, ou melhor, no “menino”, que por ser mais abstrato é mais abrangente e rico em possibilidades, que engendrou os caminhos para que Tonho pudesse romper com a tragicidade de seu destino que a SECA o tentou fazer aceitar.

Thais Carvalho Fonseca
Eduardo Oliveira Pereira

Texto publicado no jornal O Estado do Maranhão, em: 29 de abril de 2009

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