
“O cinema pensa” é o título da interessante obra de Julio Cabrera, que relaciona o cinema com a atividade filosófica. Para esse autor a arte cinematográfica vem acrescentar uma nova maneira de pensar nas sociedades contemporâneas, já que arte é também uma forma de conhecimento. Mais do que um motivo para comer pipoca, os filmes devem ser entendidos como um mote para reflexão e difusão em massa de pensamento crítico.
Mostra digna do papel pensante do cinema são os filmes do brasileiro Heitor Dhalia. Este cineasta, deveras pouco conhecido, já mostrou em sua película “O cheiro do ralo”, baseado no livro homônimo do quadrinista Lourenço Mutarelli, como tratar dos problemas contemporâneos numa perspectiva muito peculiar do humor negro. O filme, estrelado por Selton Melo, é uma produção independente e audaciosa. Com um orçamento de apenas trezentos e quinze mil reais, trouxe as angústias do homem moderno na figura de um comerciante de objetos usados. Lourenço, ao comprar objetos valiosos de pessoas em desespero financeiro, passa a coisificar as relações humanas, tornando-se um ícone da sociedade de consumo afundada em seu materialismo.
É, porém, em sua última produção, À Deriva, atualmente em cartaz nos cinemas brasileiros, que Dhalia consolida seu potencial de pensador através da sétima arte. O filme indaga acerca de um problema bastante difundido entre os meios de massa, no entanto, pouco compreendido: a decadência da estrutura familiar. Com a brilhante atuação de Débora Bloch (Clarice) e do ator francês Vicente Cassel (Matias), o filme relata a história de uma família do início dos anos oitenta que, para superar alguns conflitos, decide passar as férias em Búzios, Rio de Janeiro.
Felipa, uma adolescente de 14 anos, está em meio às descobertas da adolescência. Sexo, bebidas, traição. As novidades aparecem num turbilhão incompreensível; seus pais, todavia, de nada podiam saber, já que estavam imersos em terríveis problemas conjugais. Num casamento vivido à deriva, Clarice, professora, acaba por se apaixonar por um aluno dez anos mais novo. A separação parecia inevitável, mas para Matias, escritor de relativo sucesso, a superação era possível; todo o drama só deveria restar nas páginas de seu mais novo romance.
O drama da separação vivido por um casal da classe média brasileira não é necessariamente a receita de sucesso no atual contexto do cinema brasileiro. Os sucessos de público têm retratado esmagadoramente a pobreza e a violência no país, como “Tropa de Elite” e “Cidade de Deus”. Porém a fórmula da arte de Dhalia parece ser justamente tratar do homem atópico, universal em seus conflitos.
Querer refletir através do cinema não é apenas produzir filmes que tratem de problemas sociais gritantes. A imagem é hábil em transmitir verdades pouco sensíveis à nossa razão, além disso, o cinema é capaz de revelar conhecimentos que jamais a nossa vã filosofia conseguiu imaginar. As imagens da pintura, da poesia, da dança ou do cinema guiam conceitos, permitindo a reflexão de questões ainda sem repostas, ou, numa singela interpretação de Nietzsche, a arte sempre quer explicar o inexplicável.
Texto publicado no jornal O Estado do Maranhão, caderno alternativo, 30 de agosto de 2009, p. 6
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