sábado, 9 de julho de 2011

O absurdo da mudança

O triste fim de Quaresma, na obra de Lima Barreto, é na verdade o fim de todos nós. Não apenas o fim irremediável da morte, que encerra a realidade, mas o fim do sonho, que jamais teve a oportunidade de começar.
Lima Barreto nos faz caminhar, junto com sua personagem Quaresma, nos limites do sonho, da loucura e da realidade. Caminhar por esses lugares nos torna confusos, na medida em que não queremos mais fazer abismos entre o sonho e realidade. Não querer renunciar ao sonho, parece ser o primeiro passo para a loucura. Mas como mudar a realidade senão através de nossas idealizações? Esse é o grande problema em Triste Fim de Policarpo Quaresma.
O major Quaresma é um típico burocrata do fim do império brasileiro. Sistemático e intelectual, ele era ainda um grande nacionalista. Sua cultura o levou a perceber o problema do nacionalismo no Brasil. A ausência de identidade do nosso país beirava a cegueira e para Quaresma ele era o único lúcido, o único brasileiro capaz de perceber o quanto nós nos afastávamos de nós mesmos. Sua clareza sobre o assunto era tanta que beirava a loucura. A insistência em valorizar nossa música, as modinhas, o violão como instrumento de nossa cultura, e em resgatar o tupi e os costumes indígenas como traço originários de brasilidade, fez de Quaresma um verdadeiro louco. Mesmo que alguns, como sua afilhada Olga e o músico Ricardo Coração dos Outros, percebessem a lucidez de suas ideias, não havia aquele que se interessasse em levar para realidade, como Quaresma pretendia, aquelas mudanças tão radicais.
Para as pessoas mais racionais A Utopia, como descreveu More (2010), deve permanecer em seu lugar. No lugar dos suspiros e das lágrimas. No inconcretizável, no distante ideal de um sonho que jamais se realizará. Mas felizmente há os loucos e os esquizofrênicos, que sonham com o sonho, que vivem seus sonhos e, por isso mesmo, são os mais capazes de provocar verdadeiras mudanças. Os realistas acreditam tanto na realidade que são incapazes de perceber que na verdade vivem o sonho dos outros e que são apenas instrumentos dos delírios de um poder qualquer.
Quaresma sabia claramente que aquela submissão brasileira não poderia ser o sonho de nosso país, mas ele não pôde compreender que nossa postura colonial era uma ideia fixa apregoada pelos instrumentos de poder e que não seria assim tão óbvio querer viver o sonho da brasilidade. Quaresma foi parar no hospício, lugar dos idealistas. Depois, liberto por seus familiares, foi para o Sossego, um sítio onde ainda insistia em concretizar seu sonho de dar o Brasil aos brasileiros, mas outras barreiras ainda o impediram. Seu sonho de valorizar a agricultura brasileira, a melhor do mundo, esbarrou com o clientelismo político, os latifúndios e umas saúvas...
Neste momento de sua trajetória, Quaresma começa a entender que viver um sonho depende de como percebemos a realidade. A mudança social apenas ocorre quando o sonho da transformação consegue apalpar a realidade. E por um momento

A luz se lhe fez no pensamento...Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transforma em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as. (BARRETO, 1998, p. 141)

Crente de que seria capaz de contribuir para uma mudança social real Quaresma resolve participar dA Revolta da Armada - insurreição dos marinheiros da esquadra contra o continuísmo florianista e segue para o Rio de Janeiro, alistando-se na frente de combate em defesa do Marechal Floriano. Quaresma havia mandado seu projeto agrícola para Floriano e ao falar com este sobre assunto, diz

Vê V. Exª como é fácil erguer este país. Desde que se cortem todos aqueles empecilhos que eu apontei, no memorial que V. Exª teve a bondade de ler; desde que se corrijam os erros de uma legislação defeituosa e inadaptável às condições do país, V. Exª verá que tudo isto muda, que, em vez de tributários, ficaremos com nossa independência feita... (BARRETO, 1998, p. 189)


Floriano simplesmente responde que Quaresma “é um visionário...” (BARRETO, 1998, p. 190). Não havia interesse algum em mudança. O absurdo da mudança é próprio dos loucos e sair da loucura para a lucidez de uma realização é privilégios de poucos na história dos homens. No geral estes loucos são mortos, assassinados para que os normais possam um dia quem sabe assimilar tais loucuras num nível mais simbólico e menos material.
            A presença do dO louco transformador é por demais insuportável. Ele sempre aponta nossos erros que preferimos esconder. Ele é a presença irrenunciável de verdades que detestamos, da perfeição que supostamente aspiramos, mas que nos recusamos a perseguir em prol de nossos desejos próprios. É por isso que em A Utopia, Rafael ao terminar seu relato, faz com que o narrador reflita

Veio-me à mente uma quantidade de coisas que me pareceram absurdas nas leis e costume utopianos, tais como seu sistema de fazer guerra, o culto, a religião e várias outras instituições. O que o sobretudo transtornava minhas ideias era o alicerce sobre a qual foi erguida esta estranha república, quero dizer, a comunidade de vida e de bens, sem tráfico de dinheiro. Ora, esta comunidade destrói radicalmente toda nobreza e magnificência, todo esplendor e majestade – coisas que, aos olhos da opinião pública, fazem a honra e o verdadeiro ornamento de um Estado. (MORE, 2010, p. 103)

É nessa contradição que está o paradoxo do social. O sonho individual e o sonho coletivo são por demais contraditórios, já diz Freud (1930) em O Mal-estar da civilização. Louco é aquele que decide viver o sonho do social, que consegue renunciar-se a si de alguma maneira... Mas como isso é possível? Até mesmo quando buscamos esse suposto sonho coletivo nós não fugimos totalmente da encruzilhada que são nossos desejos egoístas, como demonstra a terrível saga cinematográfica de Lars von Trier, Dogville (CARVALHO, 2011). Até que ponto querer mudar realiza um bom papel social?
            Lima Barreto (1998), diante dos problemas brasileiros, não sabe como sintetizar tais questões. A única solução visível é a morte, capaz de criar um herói, o suposto ideal da perfeição perseguida. Mas inesperadamente, a morte de Quaresma, no enredo de Barreto, não faz dele um herói. Ficamos diante de seu triste fim, sem realidade, sem sonho. Um nada que retrata as contradições sociais, gerador de uma angústia de incertezas. Essa angústia será um dos fortes motes da literatura brasileira moderna, que fará da questão da nacionalidade um recôndito de uma resposta para o nosso social. Para nós, encontrar uma identidade nacional seria a solução para os nossos mais terríveis problemas e é no sonho da autonomia que ainda pensamos as problemáticas sociais brasileiras.
Porém, com o Triste Fim de Policarpo Quaresma, Barreto nos faz refletir sobre este delírio que já virou coletivo. A questão de nossa nacionalidade é de fato o problema que devemos enfrentar? Essa é a nova questão que paira na contemporaneidade. Devemos pensar que sonhar para mudar exige sempre a lógica do absurdo que nos faz sempre rever as premissas de nossos intensos e apaixonados ideais...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Porto Alegre: L&PM, 1998.

CARVALHO, Thais. Devaneios sobre Dogville. In:
 http://litteraeinextremis.blogspot.com/search/label/Cinema%20e%20Literatura. Acesso:
julho, 2011.

MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010.

SIGMUND, Freud.(1930). O mal-estar na civilização. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XXI, p. 65-148.
                                                                                                                      Thais Carvalho Fonseca

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