quarta-feira, 3 de junho de 2009

Contemporaneidade e releitura de O Crime do Padre Amaro


A afamada e polêmica obra do escritor português Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro, não deixa de causar impacto, ainda hoje, numa sociedade que se diz moderna e acostumada a romper com paradigmas. A versão final do livro, publicada em 1878, pretendeu descortinar toda a hipocrisia da burguesia portuguesa do séc. XIX juntamente com duas outras obras de cunho realista, O primo Basílio e Os Maias, sendo a trilogia batizada sarcasticamente pelo autor de Cenas da vida portuguesa. As adaptações das obras da fase realista de Queirós em filmes não deixaram, entretanto, de alcançar uma identificação com o público contemporâneo. O filme mexicano do diretor Carlos Carrera El Crimen Del Padre Amaro ratifica com maestria a atemporalidade da obra literária ao tratar da universalidade do homem ainda que se parta de um fato gerador delimitado.
A película mexicana é também um retrato mordaz de aparências sociais e, mesmo seguindo a fórmula ácida do escritor português ao questionar o celibato católico, não deixa de retratar os problemas específicos da realidade do povo mexicano. O roteiro desenvolvido por Vicente Leñero acaba por privilegiar a temática do tráfico de drogas e da guerrilha no povoado de Los Reyes em detrimento do amor proibido de Amaro por Amélia. Já no início do filme o espectador se inquieta com a hipocrisia de Padre Benito que, envolvido com chefes do tráfico de drogas, exige o afastamento de Padre Natálio do movimento dos guerrilheiros, simples camponeses obrigados a pegar em armas para defender suas terras da exploração dos traficantes.
A trama se desenrola na luta de Natálio pelo povo contra a corrupção da igreja e nesse desenrolar Amaro hesita diante do servir a Deus ou a si mesmo; sua relação com Amélia será apenas consequência de sua decisão. Assim como pretende a estética realista, o religioso é colocado em sua individualidade, na possibilidade de optar pela renúncia ao celibato e às hipocrisias vistas em sua paróquia, ou pela eliminação brutal de seu problema incômodo, a gravidez da bela Amélia. A figura do Padre Natálio, que aceita a excomunhão para permanecer junto de seu rebanho, reforça bastante a rejeição da ideia de que houve uma influência determinante do ambiente na construção do personagem central, ainda que a brilhante interpretação de Gael García Bernal nos faça crer num Amaro de personalidade fraca e volúvel. Além disso, o filme traz a temática do aborto, um dos pontos mais delicados dentre os dogmas católicos, o que sugere que o pároco não é tão afeito aos princípios cristãos quando eles interferem em seus interesses.
O individualismo realista é mais plenamente explorado na primeira versão da obra de Eça de Queirós, escrita em 1871. O crítico José-Augusto França explica que, nas duas primeiras versões, padre Amaro mata o filho que acaba de nascer, para configurar a realização de um crime que é sugerido pelo título da obra. Apaixonar-se por uma bela rapariga é uma falta grave para um celibatário, mas um ato humano. “Uma falta não é crime. Amaro teria, portanto, de cometer um, matando o filho” afirma França. Mas na versão definitiva, Amaro não mata seu filho, entrega-o a uma ama especial que se encarrega do serviço. O título, apesar da ausência do crime, se mantém, o que sugere que a falta cometida por Amaro passa a ser considerada o crime da história, remetendo o conceito de crime a uma problemática mais social que individual, numa solução mais ou menos romântica, mais ou menos terrível, nas palavras do crítico.
A culpa do homem industrioso do séc. XIX é algo restrito à sua individualidade e vontade. A própria noção de culpa é algo típico do homem burguês. Édipo, personagem da tragédia grega de Sófocles, comete um crime no qual o elemento culpa é completamente dispensável, pois ele não possuía qualquer controle sobre os fatos. No filme, Padre Amaro se sente culpado de ter praticado algo evitável, mas tal culpa não o consome como ocorre com Luísa de O primo Basílio, levando-a à morte. O padre celebra a cerimônia de velório do corpo da jovem de maneira fria e com a mesma expressão inocente e amável que carrega o tempo inteiro consigo.
Toda a tentativa de dissimulação da realidade é percebida apenas por Dionísia, uma velha bruxa e mendiga. Ela é aquela que tudo sabe e que tudo vê. O véu dos disfarces é descartado de sua visão de mundo. Sua figura e seu nome lembram o espírito dionisíaco retratado por Nietzsche. A sabedoria dionisíaca seria aquela que reconhece os prazeres do mundo e os excessos dos homens como algo próprio do homem e não como um desvio, algo anormal ou fora da realidade humana. Dionísia percebe com facilidade a relação de Amaro e Amélia, apesar de sua condição de enjeitada pela sociedade. Seu aspecto místico e sua estranha devoção ao cristianismo, levando hóstias para curar loucos e até seu gato doméstico, demonstram a preponderância do dionisíaco ante ao apolíneo, que segundo Nietzsche seria o equilíbrio para os excessos humanos.
O padre Amaro de Carrera reflete um homem contemporâneo ainda exposto a conflitos morais e ao excesso inerente à natureza humana, porém há aí uma perspectiva diferenciada do contexto do Amaro de Eça de Queirós. Na obra portuguesa a instituição da igreja católica é duramente massacrada através da figura de um religioso. No filme a preocupação central não é a igreja, mas a manipulação feita pelo homem das instituições sociais, seja ela religiosa ou política, em benefício próprio; um problema marcadamente atual. A tão decretada falência do estado moderno das sociedades capitalistas tem como principal causa a corrupção da máquina burocrática e a despolitização da sociedade que se encontra num ostracismo pessoal visível. O Amaro mexicano do séc. XXI é apenas uma mostra da inevitável simbiose entre os conflitos humanos interpessoais e o contexto social em que se vive.
Thais Carvalho Fonseca

Texto publicado no Jornal O Estado do Maranhão em 02 de junho de 2009

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