domingo, 5 de julho de 2009

A linguagem cinematográfica em Amor nos tempos do cólera


Love in the time of cholera, filme americano lançado em 2007, direção de Mike Newell, foi alvo de ácidas críticas por parte dos amantes da literatura do colombiano Gabriel García Márquez. O filme trouxe ao público o enredo fidedigno do romance homônimo, um dos preferidos de Gabo, mas de fato deixa a desejar em alguns aspectos. Comparar um filme adaptado ao livro que lhe serviu de premissa é algo quase que inevitável, porém não há como desconsiderar o fato de que a linguagem cinematográfica oferece possibilidades diversas ante a linguagem literária. No caso de Amor nos tempos do cólera temos uma prosa de altíssima qualidade adaptada num filme desleixado, mas que em alguns momentos soube utilizar favoravelmente a sétima arte em favor da literatura.
O filme foi gravado em Cartagena de las Indias. Os costumes apresentados, o figurino, a trilha sonora contribuíram para identificar o local de gravação com Cartagena, cenário do livro, no entanto ao lado de um ambiente caliente são colocados atores em sua grande maioria latinos utilizando um inglês não muito fluente e figurantes falando em espanhol, um verdadeiro espanto! Afora isso, a construção do tempo, tão bem elaborada na obra de García Márquez, torna-se extremamente inverossímil e até esdrúxula no filme. Fermina Daza conserva praticamente o mesmo rosto dos treze aos setenta e dois anos; a maquiagem realizada nos atores não fica bem feita e o envelhecimento se torna uma verdadeira farsa.
A película peca em aspectos técnicos, mas em algumas construções da história é muito feliz, pois há uma conotação bastante risível de algumas cenas que combinam com as pretensões da escrita de Gabo, marcada pela elaboração do que a crítica literária denomina de realismo fantástico, ou seja, uma forma estilística que visa trazer elementos mágicos ou estranhos como algo comum no cotidiano da personagem em tela. Essa nova forma da prosa fantástica surge a partir das surpreendentes obras de Franz Kakfa e se desenvolve na América hispânica e no Brasil a partir dos anos sessenta e setenta como fruto da convivência antagônica de duas visões: a superstição e a tecnologia.
Em Amor nos tempos do cólera temos um amor platônico, infinito e incansável, quase mítico, baseado, inclusive, na história de amor dos pais do autor. Florentino Ariza, telegrafista, violinista e poeta, se apaixona irremediavelmente por Fermina Daza que, inicialmente corresponde ao amor do rapaz, mas, com a proibição do namoro pelo pai, que visava um partido rico para sua bela filha, desiste de Ariza e casa com o doutor Juvenal Urbino. O telegrafista não desiste; espera cinqüenta e um anos, nove meses e quatro dias para reencontrar seu amor com a morte do doutor Urbino. O romance trata dos desejos dos homens, de suas fantasias perfumadas e cor de rosas que se confundem com uma realidade nem um pouco sensível. O homem contemporâneo em meio a guerras, epidemias e ditaduras se torna o próprio fantástico quando quer transformar sua vida em um sonho encantado. Florentino Ariza ama o seu amor por Fermina e sua vida só faz sentido dentro dessa ilusão, porém a realidade não o abandona. Coleciona mais de seiscentas amantes que acredita ser um consolo para a sua espera; sua mãe – Transito Ariza, interpretada brilhantemente por Fernanda Montenegro – no fim da vida é acometida de mal de Alzheimer, uma forma orgânica de distanciamneto da realidade; uma de suas amantes que havia lhe despertado um amor sincero é assassinada pelo marido aos decobrir a traição da esposa.
O filme explora proficuamente esses contrates. A cena inicial, com Florentino Ariza já velho com uma colegial nua numa rede, causa uma certa ojeriza, mas transcorrido a história em flash back e repetida a cena ao final do filme, tudo parce mais explicável, pois acabamos imersos na fatansia do jovem telegrafista. Fermina Daza adentra no sonho do casamento perfeito com o melhor partido da cidade, porém o cotidiano do casamento, descritos de uma maneira deliciosa na prosa de Gabo, a deixa confusa sobre o amor. Fermina nunca saberá se amou, apenas viveu o que tinha para ser vivido. Com a morte do marido, ela percebe como a pulsão do viver é construída por nós mesmos ao idealizarmos sonhos impossíveis. Após a eterna insistência de Florentino Ariza, se entrega a essa maravilhosa fantasia de amor, mesmo com setenta e dois anos de idade.
A velhice é a maior prova de que a realidade existe mesmo, por mais que queiramos sempre nos afastar dela. Simone Beauvoir em extenso ensaio sobre a velhice nas sociedades não deixa de demonstrar o quanto ocultamos e desprezamos essa fase da vida com medo da realidade. A autora francesa denuncia que em todas as sociedades a temática dos velhos foi desprezada; quando se é velho, para muitos, não há mais vida nem possibilidades, a libido seria algo inclusive impossível em pessoas senis. Grabiel García Marquez ao explorar os contrastes entre sonho e realidade, nos traz brilhantemente um amor platônico concretizado na velhice, que pode parecer até inverossímil a alguns, mas plenamente possível segundo demonstra os estudos de Beauvoir que chegou a idenficar casais octagenários que possuiam vida sexual plenamente ativa. Fermina é condenada pelos filhos ao querer viver ridicularmente um amor nessa idade, mas a vontade de viver e continuar a sonhar é bem maior que o preconceito de uma sociedade.
No filme a velhice fica ainda melhor explorada, pois há o recurso da imagem que nos aproxima de maneira íntima a essa dura realidade. De maneira mais que arrepiante, o filme mostra Fermina Daza velha e nua e ainda objeto de desejo de Florentino. Os aromas da velhice não retiram o encanto da fantasia. O amor ideal finalmente torna-se carnal, real, com a relação sexual que também é concretizada em cenas no filme. Dois velhos se amando numa viagem romântica em um navio no rio Madalena pode até não ser um final típíco da receita hollywoodiana, mas não deixa de oferecer a fórmula do happy end. A diferença é que em Amor nos tempos do cólera temos um homem oniríco fora de seus sonhos; a felicidade encontrada na dureza da realidade.
Thais Carvalho Fonseca

Texto publicado no Jornal O Estado do Maranhão, em 04 de julho de 2009

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