domingo, 12 de julho de 2009

A Crítica Psicanalítica




À partir de Marcelle Marinni
Introdução
A psicanálise surge com o questionamento, através da prática analítica, da fala e do discurso. Porém antes da psicanálise, a literatura já colocava o discurso em tensão ou nos dizeres de Roland Barthes (2007, p.16), a literatura é um “(...) logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem (...)” A relação necessária entre o estudo da psicanálise e o estudo da linguagem fez com que aquela, já nos seus primeiros passos, recorresse ao material literário.
Freud em suas primeiras elaborações teóricas se utilizou de obras como Édipo- rei de Sófocles, Hamlet de Shakespeare e Os irmãos Karamasov de Dostoiévski. Porém nos resta saber como ocorreu a contribuição do método psicanalítico nas concepções de fala e imaginário, surgindo assim a crítica psicanalítica, que segundo Jérôme (2002) se desenvolve ao longo dos anos sessenta como uma das diversas correntes da nova crítica. Isso é necessário, pois não podemos acreditar que a crítica psicanalítica se resume à aplicação de um arcabouço teórico da psicanálise num texto literário, a fim de procurar ilustrações para suas teses. A crítica psicanalítica é um trabalho de interpretação e de leitura à luz da psicanálise, e, para a realização de tais atividades, é necessário compreender e se posicionar ante as diversidades de teorias psicanalíticas, de objetivos propostos e da diversidade de corpus, ou seja, das produções culturais passíveis de uma análise psicanalítica, tendo em conta que a priori toda produção humana possui alguma influência do inconsciente, este a principal descoberta de Freud e marco do surgimento da psicanálise. Passemos a esse entendimento.
1 As bases do método

A crítica psicanalítica é uma atividade de interpretação, como dito alhures, baseada no pensamento e na prática analítica. Esta é marcada pelo talking cure, ou seja, o paciente realiza a associação livre, fala com toda a liberdade sobre o assunto que deseja falar, e o analista, a partir dela, realiza a escuta flutuante ou a atenção flutuante. Nesta o assunto da fala de seu paciente não importa em si, se é ou não verdade, o que irá interessar é interpretação dos símbolos, o desvelar do inconsciente através de vestígios, indícios que aparecem no discurso que se manifesta; similar ao que ocorre nos sonhos, por isso Carlo Ginzburg situa a psicanálise entre os sistemas semióticos de conhecimento.
No sonho ou na fantasia há a manifestação de desejos que restam recalcados no inconsciente. Porém tais manifestações não ocorrem de maneira explícita, elas se manifestam em processos como o deslocamento, a condensação, a figurabilidade e a elaboração secundária que necessitam de interpretação ou de interpretações, já que a psicanálise se faz através do sujeito que interpreta. Da mesma forma se pretende que ocorra na atividade da crítica psicanalítica, há, porém, algumas diferenças que devem ser marcadas.
Na análise psicanalítica de textos não há a mesma relação de divã e poltrona, o analista se depara com o silêncio e a privacidade do discurso do texto que falará mediante seu inconsciente, pois, segundo André Green (2002), o escritor pensa o texto (já não há aí como realizar a associação livre), criando lacunas para o leitor consciente e inconscientemente, assim o crítico fica entalado entre o escritor e o leitor da obra crítica, já que sua análise dependerá de como irá preencher tais lacunas, num processo puramente interpretativo. Além disso, há uma distância, inclusive histórica, entre leitor e escritor diferente da proximidade física da análise. Diante de tais diferenças, como adaptar, desta monta, para a leitura, o método ligado à situação estritamente analítica ?

2 Utilização da literatura pela psicanálise

A psicanálise se utilizou da literatura nos seus primeiros momentos como mediadora entre a clínica e a teoria. Assim ocorreu com as interpretações feitas por Freud em Édipo-rei e Hamlet. Na obra de Sófocles, Freud identificou o inconsciente em funcionamento, sem recalque. Ali estaria o desejo primitivo infantil dos seres humanos do amor incestuoso pela mãe e o desejo de parricídio para concretizar o amor para com a mãe. Em Hamlet há tal desejo, mas eles restam racalcados, necessitando da interpretação para seu desvelar e nessa atividade Freud não apenas trata Hamlet como seu paciente histérico como também realiza uma auto-análise, isso porque “(...) a obra literária não é nem um sintoma, nem a fala em análise, oferece-nos uma forma simbolizada para um aspecto de nosso psiquismo inconsciente que dela estava privado” (MARINNI, 2006, p. 64).
Daí podermos dizer que, nessa atividade interpretativa, a literatura funcionou como mediadora, pois Édipo e Hamlet funcionam como imagens mediadoras entre o inconsciente e aquilo que foi recalcado, podendo funcionar como mediadora do passado recalcado da humanidade e o presente, funcionando a obra literária, como ele tipicamente o é, num caráter atemporal. Assim o material literário foi tido como imagens que concretizam a teoria freudiana verificada em sua atividade clínica
Lacan também se utiliza da literatura, porém não da forma como Freud o fez, pois o conto policial de Edgar Alan Poe será utilizado, juntamente com a teoria de Freud, para a elucidação de uma verdade pensada por Lacan. A leitura que este teórico faz transforma o Édipo numa lógica geral do sujeito considerado na ordem do parentesco. É a partir do enredo dessa histórica que Lacan conclui que todo sujeito está subordinado a uma ordem simbólica que o transcende e define seu lugar, idependente de qualquer vivência social, caráter, dons ou sexo. Lacan explica que o inconsciente está estruturado como no funcionamento de uma língua que tem seu funcionamento regulado pela ausência ou presença do falo.
A literatura, como se observa, não deixou de expor um saber sobre o inconsciente, porém de maneira diferente da atividade psicanalítica, por isso o encontro entre tais abordagens trouxe verdades relevantes para a construção do saber psicanalítico. A diferença marcante da abordagem literária, sua plurisignificação ou sua multipossibilidades, deve ser levada em consideração o que permitirá o desenvolvimento de outra relação entre psicanálise e literatura: a que toma a obra literária como objeto de estudo.

3 A obra literária como objeto de estudo

Nessa abordagem a psicanálise funcionará como mediadora entre a obra e seus leitores, ou seja, o material psicanalítico terá como função desvelar a ficcionalidade da literatura, pois o escritor é aquele que entende o inconsciente pelo autoconhecimento no delírio da escrita, sendo a literatura situada entre o patológico e o médico; já o analista é aquele que só conhece o inconsciente a partir dos outros, no desvelar dos discursos. Assim a relação da psicanálise com a literatura é também ambígua como o é com as demais ciências humanas; a literatura acaba por funcionar como uma abordagem empírica de uma verdade ou de um modelo produzido pela teoria, um material clínico.
Nesse contexto os projetos críticos que podemos identificar são diversos, mas todos se centram na obra como material de acesso ao inconsciente do autor. Assim ocorre com o estudo da patologia da personagem e da obra feita, por exemplo, por Julia Kristeva, a psicobiografia realizada por Marie Bonaparte, o estudo analítico das autobiografias como o fez Philippe Lejeune. Com a monografia intitulada Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen na qual Freud passa a ver a literatura como um documento que antecipa suas próprias hipóteses clínicas, dar-se-á, segundo Jérôme (2002, p. 96), o início de uma mudança em relação aos projetos críticos anteriores.
Tais projetos sofrerão uma mudança de foco com a leitura analítica de Sarah Kofman, baseada na percepção de Freud de tradução dos símbolos: a leitura sintomal e a leitura estrutural. Tais leituras não se restringem a obra, pois, para Freud, um símbolo só é depreendido através da interpretação de conflitos e emoções infantis e da maneira como estes se desenvolvem ao longo da existência do escritor e da construção da obra. A leitura sintomal entende o discurso como sintoma, já a leitura estrutural segue duas tendências: da leitura de um texto, passa-se a correlacionar diferentes textos de um mesmo autor, para descobrir uma estrutura psíquica particular, ou então associam-se textos de origem diferente para detectar uma estrutura universal. Tais modalidades de leitura darão origem ao primeiro método consolidado da Crítica Psicanalítica, o método de Charles Mauron. É apenas com este que se inicia uma leitura verdadeiramente literária.

4 A psicocrítica de Charles Mauron

O método de Mauron é baseado na leitura estrutural que se utiliza de textos de vários autores. Sua sistemática é divida em quatro etapas: a prática das sobreposições, que possibilita a estruturação da obra em torno de redes de associações; a descoberta de figuras e de situações dramáticas ligadas à produção de fantasias; o mito pessoal, sua gênese e sua evolução, que simboliza a personalidade inconsciente e sua história; e o estudo dos dados biográficos que servem de verificação à interpretação, mas só recebem importância e sentido da leitura dos textos. Vale ressaltar que tal método não necessariamente segue essa ordem, realiza um constante vai e vem na pesquisa. Além disso, o estudo é tanto sincrônico como diacrônico, partindo ao acaso com os textos, para descobrir uma estruturação simbólica de um conflito psíquico que ignora no início.
Mauron, com seu método, consegue levar a análise psicanalítica à especificidade dos textos literários. Jérôme (2002, p. 98 e 99) explica que a prática das sobreposições consiste na identificação de redes de associações ao confrontar diferentes textos. Não há um estudo temático, explica o autor, que ocorre num nível consciente, na busca do implícito, há a identificação de imagens latentes de diferentes textos que permitam a construção da fantasia do autor, de seu mito pessoal, na busca do reprimido. Na explanação de Marinni, a sobreposição permite a construção de uma rede de associação que delineia uma estrutura textual autônoma aos textos do qual foi retirada. As estruturas textuais desenham figuras e situações que revelam a fantasias do escritor que resistem à sobreposição de suas obras; isso será o mito pessoal do escritor e não uma identificação de leis universais de desejos dos homens. Tais fantasias devem ser comprovadas com a biografia do autor, identificando na sua história, a construção de seus anseios. Tal método permite uma estruturação da personalidade inconsciente a partir da estruturação dos textos.

5. Novas orientações

Os métodos atuais de crítica psicanalítica se distanciam da proposta de Mauron. Pode-se destacar duas posições relevantes: a textanálise de Jean Bellemin-Nöel e a semanálise de Julia Kristeva. Nesta última há uma preocupação de articular semiologia e psicanálise, pois, para a teórica, o homem moderno vive na tensão entre signo e o simbólico, ou seja, o que é da ordem natural e instintiva e o que é da ordem cultural. A psicanálise deveria se ater mais a esta questão, pois Kristeva recusa a sexualizar as produções culturais.
A textanálise recusa o inconsciente do autor e busca o inconsciente do texto para a realização da análise. Jérôme (2002, p. 104) explica que “o inconsciente de um texto não se confunde, pois, com o do escritor, mas mobiliza, pelo trabalho da escrita, o inconsciente do leitor que nele se reconhece”. Nessa perspectiva a crítica psicanalítica se afina claramente com as intenções de um texto literário que sempre se pretende interrogativo e passível de multiplicidades interpretativas. A textanálise inventa indefinidamente seu leitor já que, segundo os ensinamentos de tal teórico, temos uma atividade de crítica que desvela o inconsciente do próprio leitor através da organização inconsciente do texto. É o que André Green chama de delírio do leitor-escritor-crítico que na busca de revelar um texto literário, delira também como escritor, a diferença é que o crítico-escritor quer apenas revelar e escritor-poeta quer ocultar e quando faz, o faz duas vezes, de forma consciente e inconsciente.

REFERÊNCIAS
MARINNI, Marcelle. A crítica Psicanalítica. In: BERGEZ, Daniel. et. al. Métodos críticos para a análise literária. tradução Olinda Maria Rodrigues Prata; revisão da tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 45 a 96.

BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977/ Roland Barthes; tradução e pósfácio de Leyla Perrone-Moisés. – São Paulo: Cultrix, 2007.

JÉRÔME, Roger. A crítica psicanalítica. In: A crítica literária. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.

GREEN, André. Literatura e Psicanálise: a desligação. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.




4 comentários:

  1. Olá Thaís,

    Meu nome é Marcella e também sou estudante de Letras. Gostaria d elogiar seu trabalho aqui no blog e agradecê-la por esse texto de psicanálise pois me ajudou muito em um trabalho.

    Continue com o bom trabalho,
    ;**

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  2. Gostei do seu trabalho. Gosto muito de Crítica Literária por isso gostei do seu texto que se apresentou objetivo, claro e conciso.

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  3. Muito bom o texto, ajudou bastante na minha pesquisa. Obrigada.

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