domingo, 28 de agosto de 2011

A moral posta em Dúvida

Não há dúvidas quanto à necessidade de definirmos o que é do bem e o que é do mal, porém também não restam dúvidas de que essas definições não são absolutas, pois a moral não é absoluta. A moral vive neste paradoxo. A formação do social depende de que uma lei seja estabelecida, pois sem esta o homem não é capaz de renunciar a si mesmo em prol do outro, para que o laço social seja possível, como explica Freud em Totem e Tabu. Mas por outro lado a definição dessa lei vive na tensão da agressividade de todos contra a submissão e o sentimento de culpa que envolve o corpo social em querer desfazer o laço, a união, na busca em satisfazer benefícios pessoais.
É por isso que a lei é dinâmica e varia nos grupos sociais. Tudo irá depender de uma espécie de vontade de renúncia dos que obedecem à lei e do desejo de que outros renunciem também por parte de quem define e materializa a lei (na moral quando alguém se desvia da regra é punido, uma espécie de manifestação agressiva contra aquele que fez o que todos querem fazer, mas sempre resistiram a duras penas). A renúncia é o lugar da dúvida, pois quando se renuncia não há mais busca. Há uma desistência das vontades para que uma única vontade reste vitoriosa: estar no lugar da dúvida. Porém tais relações num nível simbólico do social estão invertidas. O lugar da dúvida é o lugar da certeza e o lugar da certeza é o lugar da dúvida. Explico. O lugar da dúvida é o lugar onde aceitamos sem questionar o que nos disseram o que é o bem e o mal, por isso é simbolicamente a certeza, mas no íntimo não conseguimos esquecer que esses valores não são tão definitivos assim. O lugar da certeza é o lugar onde se questiona, pois, por mais que não se saiba quais serão as regras ideais, consegue-se renunciar a certeza do instituído e viver na certeza da própria dúvida.
O filme americano Doubt utiliza da linguagem cinematográfica de maneira magistral para demonstrar como a moral nos insere nesses diferentes espaços da dúvida. O quadro é o colégio religioso de St. Nicholas, no Bronx, regido pela irmã Aloysius Beauvier, diretora da instituição. Esta figura ganha uma áurea de autoritária quando sua figura é oposta à meiguice e compreensão da irmã James. Inicialmente o filme cria um clima maniqueísta entre essas duas figuras, como para simbolizar o bem, na jovem e esperançosa freira, e o mal na velha e rude madre superiora. Porém, ao longo da trama, o espectador percebe que tais julgamentos não podem ser assim tão definitivos. Primeiramente nos deparamos com irmã Aloysius com uma postura altruísta, muito distante de sua costumeira intolerância. A madre protege uma companheira da iminente expulsão da escola, devido à inatividade desta, proveniente de uma cegueira. Por outro lado, a jovem freira, já avisada por sua superiora, desconfia da atitude do novo padre da instituição em relação a um aluno, Donald Miller. Durante uma aula, o padre manda chamar o jovem para uma conversa, e ao retornar irmã James percebe certo constrangimento de Donald, além de um hálito de álcool.
O conflito se desenvolve de uma maneira que todos são postos a prova. Irmã Aloysius, a partir da denúncia feita por sua companheira de ofício, inicia investigações contra o padre Flynn. A velha madre passa a buscar a convicção da culpa do religioso. Muitos elementos a levam a esse lugar da certeza, a reação nervosa do padre contra as acusações, uma conversa com a mãe de Donald, que revela a má índole do filho, o comportamento carismático e despreocupado do padre, uma postura que sempre a incomodou.
Padre Flynn não era um padre convencional. Era um transgressor na busca em revolucionar padrões rígidos de comportamento, algo típico das revoluções da década de 60. Era amigo das crianças do colégio, treinava basquete com elas, fazia sermões sobre flexibilidade, fumava e comia ao seu prazer, não dispensava açúcar. A atitude da madre superiora poderia perfeitamente ser interpretada como uma campanha contra a figura de Flynn, como este chega a afirma na trama, pois o padre só estava repreendendo o vício alcoólico de Donald. Mas a atitude do padre não nos deixa chegar definitivamente a essa conclusão. Assim paira a dúvida em torno da atitude do padre em relação ao menino, e o filme coloca duas supostas firmes opiniões.
Irmã Aloysius afirma sua certeza no que diz respeito às relações inapropriadas do padre com o jovem Donald, um garoto negro que sofre preconceito latente e que busca concluir os estudos básicos em um bom colégio. Para a irmã, o padre se aproveita da condição de sofrimento do rapaz para seduzi-lo. Numa conversa com a mãe do menino, a madre se surpreende com a falta de juízo moral maternal. Para esta mãe não importavam tais relações, nem quaisquer valores, o que ela mais esperava era a formação de seu filho, que não poderia, por sua cor, encontrar outro colégio para concluir os estudos. A necessidade era a maior prioridade. O que era certo ou errado já não importava. Além disso, o padre, de unhas grandes e afeminadas, se sente ameaçado quando a madre afirma ter conversado com uma freira da antiga paróquia do religioso. Essa simples mentira de irmã Aloysius foi suficiente para que o padre pedisse sua remoção. Ele confessa que não é um homem perfeito, mas nega sua culpa em relação ao caso Donald.
Já Irmã James acreditava na inocência do padre. Para ela, ele somente buscava novos métodos de se relacionar com a comunidade. Porém tal opinião não deixa de ser um reflexo da personalidade da própria jovem freira que acreditava na flexibilidade, na ternura e na tolerância, ainda que sua crença não fosse assim tão firme. Em alguns momentos a freira percebe que a autoridade é um meio eficaz de controlar os alunos desordeiros, além disso, não consegue dormir com um sentimento de culpa terrível. Acreditar no bem seria um meio mais fácil de ver a vida e de não criar mais problemas para a sua própria existência.
No fim do filme chegamos à quebra dessas duas certezas incertas para a construção da grande Dúvida. Irmã James teme inferir o bem por simples conformismo e Irmã Aloysius chora por não ter certeza da culpa de padre Flynn, ainda que tenha sido a responsável pela remoção/punição do mesmo. Assim chegamos ao estabelecimento da dúvida última: Padre Flynn é na verdade um revolucionário que sempre foi injustiçado nas instituições por onde passou ao confrontá-las, ou seja, é alguém que transgride as normas pensando na reconstrução do bem coletivo, ou é alguém que de fato transgride as normas, porém pensando em benefícios pessoais?
Se antes a percepção de transgredir a norma perpassava pelo certo e errado, certo porque transgrediu, errado porque transgrediu (tudo era uma questão de formação de opiniões que facilmente poderiam ser desconstruídas), depois caminha-se para o lugar da certeza da Dúvida. Ele é um transgressor, mas não se sabe como julgar sua transgressão, pois não se sabe sobre o egoísmo de padre Flynn, sobre seus desejos íntimos. A dúvida da moral está justamente neste ponto. Não conhecemos os desejos íntimos das pessoas, apenas julgamos esses desejos através de signos de nossa realidade, que são apenas meras representações falhas dos verdadeiros desejos. Se estamos certos de um julgamento por elementos que a realidade nos forneceu, essa certeza é frágil, pois ela pode se destruir quando colocamos em dúvida nossa própria interpretação. Se fazemos isso é porque nunca estivemos tão certos assim de nossas convicções e quando estamos na dúvida só temos essa única certeza.
Estar na dúvida ou na certeza é uma questão de opção. A certeza nos leva a dúvida e esta à certeza. Mas o fato é que, nessa transição, não se fica o tempo todo em movimento, em algum momento é necessário parar em algum lugar. Irmã Aloysius opta pela certeza em sua ação, apesar de chorar pela dúvida. É por isso que da dúvida da moral construímos uma moral da Dúvida e, como afirma a madre superiora, o fato é que nós nunca conseguiremos dormir bem à noite.

Texto publicado no jornal O Estado do Maranhão, caderno Alternativo, 28 de agosto de 2011

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