domingo, 30 de outubro de 2011

O QUE É SER AMIGA?

O QUE É SER AMIGA?
Em um dos sonetos de Florbela Espanca[1] nos deparamos com uma Amiga. Uma mulher clama por ser amiga de um alguém querido. Mas o que é ser amiga? No trovadorismo, as Cantigas de amigo estavam repletas de um eu - lírico feminino que suspirava de saudades por seus amigos. Em Amiga de Florbela, há o desejo de ser amiga, pois ser mulher apenas é possível na tristeza.
Tringali[2] nos lembra que na cantiga de amigo não há a mulher dedicada ao homem, há aquela que sente saudade pelo amigo distante, que partiu e já não mais está. Essas amigas, do Trovadorismo e da Modernidade, porém, amam, e, por isso, elas choram, pois o amor lhes é vetado, restam a elas apenas uma suposta amizade ou um ser mulher no amor-tristeza, na coita amorosa.
O amor proibido, impossível, cria as amigas, que vivem o amor apenas no sonho bom, nos beijos nas mãos, no amor cortês, idealizado, fraternal... Mas o amor proibido não cria apenas amigas, o amor proibido engendra nossa própria realidade e, muitas vezes, faz dela o que bem quer.
A proibição, diz Lévi-Strauss[3], é a própria cultura. Não uma cultura mas as culturas nas suas mais diferentes possibilidades[4]. Há, no entanto, uma proibição específica que está “no limiar da cultura, na cultura, e em certo sentido é a própria cultura”[5], a proibição ao incesto, pela qual e na qual realiza-se a passagem entre natureza e cultura. É no terreno da vida sexual, quando necessariamente estamos numa relação com o Outro, que o social surge, e é nas e pelas regras, que determinam as possibilidades e as não-possibilidades de estarmos diante desse Outro, que a cultura se forma.
Proibição ou definição de possibilidades nos traz a questão da interpretação. Segundo Lévi-Strauss[6] as relações sociais estão imersas no simbolismo. O incesto não é algo em si mesmo, mas uma proibição infinitamente significável, especificamente do terreno sexual, que nos é dada em relação ao Outro, no Amor Eros[7], no desejo do que nos falta, na busca por esse Outro. Quem é esse Outro? A proibição dirá e a ela estaremos inevitavelmente condicionados, porém sempre na possibilidade de ir além do “E se?”... Além de um Amor Philia, de amiga, ou Agape, de irmã, do beijo na mão, das aves cantando no mesmo ninho...
Os beijos que guardamos nas mãos, podem ser os beijos sonhados para muitas outras possibilidades dos nossos próprios desejos. Como fala Marguerite Duras

L’inceste ne peut être vu du dehors. Il n’a pas d’apparence particulière. Il ne se voit em rien. Il en est de lui comme la nature. Il grandit avec elle, meurt sans être jamais venu au jour, reste dans lês ténèbre du fond de la mer, dans l’obscurité des sables de fonds des temps. Des toutes les manières ou les formes de l’amour et du désir, Il se joue.[8]

O amor proibido de Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, dos idéias românticos, da Amiga, parece ser algo cada vez mais raro nos nossos dias, herdeiro de uma modernidade que lutou por um tudo é possível, que rezava que proibir era proibido. Nossos lugares são os mais diversos possíveis, filhos de Woodstock, do in vitro, do ciberespaço; somos todos pais, irmãos e amigos?
Viva o amor livre, recíproco e feliz? Adeus histórias de amores proibidos, tristes e dolorosas? Essas são as questões que permeiam nossas atuais relações. O que é Romance?, se questiona o cineasta Guel Arraes[9]. Em nossos complicados Laços de Família[10], mãe e filha amam o mesmo homem; genro ou padrasto? Nossas relações produzem tipos novos e diversos, irmãos de criação, meio irmão, irmão de leite, madrasta, mãedrasta, padrasto, paidrasto, filho de criação, filhos bastardos? Será que eles são capazes de gerar algum amor proibido, ou há apenas todos os amores possíveis? Amor livre? Livre Amar?
Nesse contexto, ser amiga permite uma dúvida, que dissolve a mágoa e a dor que vem da proibição ao Outro e que nos permite a fantasia louca. Bendito sejas tu por mo dizeres, diz a Amiga ao seu amor proibido. Ela sabe o que lhe é proibido e, por isso, ela deseja... As mãos. Beijas-mas bem!... Os beijos na boca, apenas no sonho, e cada coisa está no seu devido (ou suposto?) lugar.
Na nossa liberdade, vivemos a prisão do não saber ou de saber apenas sobre Amizades coloridas. Mas, se é colorido, todas as cores são possíveis e, portanto, parece não haver qualquer exceção, qualquer proibição. A proibição cria a liberdade?[11] Eis a pergunta que paira quando se vive a loucura. Na amizade colorida, amor e amizade se confundem, são o mesmo, geram ambíguidades múltiplas e as angustiantes (angustiante?) histórias de Nelson Rodrigues, nos restando apenas, como consolo, o questionamento: Afinal de contas, O que é ser amiga?
Thais Carvalho Fonseca[12]



[1]  Amiga, Florbela Espanca
Deixa-me ser a tua amiga, Amor,
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor,
A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa, a mim?!  O que quiseres
É sempre um sonho bom!  Seja o que for,
Bendito sejas tu por mo dizeres!

Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...
Como se os dois nascessemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...

Beija-mas bem!...  Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei prà minha boca!...

[2] TRINGALI, Dante. Escolas Literárias. São Paulo: Musa Editora, 1994.
[3] LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. tradução de Mariano Ferreira. São Paulo: Editora Vozes, 1976.
[4] Cf. LAMY, Alice. Présentation. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Nature, culture et société: Les Structures élémentaires de la parenté, chapitres I et II. Paris: Editions Flammarion, 2008. p 9-45.
[5] LÉVI-STRAUSS, op. cit., p. 50.
[6] LÉVI-STRAUSS.  Antropologia Estrutural. 4ª Ed. Tempo Brasileiro.
[7] Cf. BORGES, Maria de Lourdes Alves. Amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
[8] DURAS, Marguerite. Agatha. Paris: Les éditions de minuit, 1981.
[9] ARRAES, Guel. Romance. [Filme-vídeo]. Direção de Guel Arraes, Brasil, Globo Filmes, 2008.
[10] Telenovela brasileira produzida e exibida pela Rede Globo em seu horário das 20 horas, de 5 de junho de 2000 a 2 de fevereiro de 2001. Com um total de 209 capítulos (150 na versão internacional exibida em países como Portugal), foi escrita por Manoel Carlos, com a colaboração de Maria Carolina, Vinícius Vianna, Flávia Lins e Silva e Fausto Galvão, e dirigida por Moacyr Góes e Leandro Néri, com direção-geral de Ricardo Waddington, Rogério Gomes e Marcos Schechtman,com direção de núcleo de Ricardo Waddington.
[11] Em aula de Teorias da Cultura e Sociedade, Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal do Maranhão, Professor Jarbas Couto e Lima: “A norma cria a liberdade”.
[12] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Estadual do Maranhão – PGCULT – UFMA. Texto para a disciplina Teorias da Cultura e Sociedade, intervenção do professor Jarbas Couto e Lima.

2 comentários:

  1. Muito boa sua análise, partindo do fenômeno literário para discutir uma questão universal, de todas as culturas: o proibido. Só considero que vc poderia postar ao menos um trecho de um dos textos literários citados (Florbela, canção de amigo, etc.), pois, assim como eu, outros internautas podem não conseguir acessar o link 1.

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