segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O Vestido

“O Vestido” é obra cinematográfica adaptada do poema “Caso do Vestido” de Carlos Drummond de Andrade (1985). Lendo este poema, podemos iniciar uma reflexão sobre se o termo adaptação é o mais adequado para falar deste filme, uma produção do cineasta Paulo Thiago (2004). “O Vestido” é uma obra que possui um roteiro claramente inspirado na obra lírica do mineiro de Itabira, porém há muitas outras referências literárias presentes na obra que a fazem, talvez, ir além da ideia de adaptação.
Conforme podemos refletir a partir de Robert Stam (2008), que pensa a adaptação numa prática intertextual, o processo de adaptar uma obra literária deve ser entendido a partir das categorias hipertexto e hipotexto, que pertencem à teoria de Genètte de transtextualidade, conforme explanação de Stam (2011) em texto específico sobre o assunto. A obra cinematográfica adaptada deve ser entendida como hipertexto que surge a partir de um hipotexto que é ampliado, porém tais categorias não são as únicas que permitem a compreensão das relações entre literatura e cinema, ainda que não se possa falar nesses termos de adaptação. Talvez a categoria intertextualidade de Genètte seja a mais adequada para falar do filme de Paulo Tiago, pois, apesar da referência clara ao poema de Drummond, há muitas alusões que revelam o diálogo com muitas outras obras literárias que vêm acrescentar e construir uma nova história e uma nova obra, apesar de o mote central do roteiro ser O vestido assim como no poema drummoniano.
A estória segue a sequência de o “Caso do Vestido”. As filhas se deparam com um belo vestido e perguntam à mãe do que se trata. A mãe explica sua trajetória de mulher traída que aguarda o retorno do marido, como Penélope aguardando Ulisses, resistindo a todas as tentações da desesperança. Porém muitos elementos que não estão presentes na poesia são acrescentados à obra de Paulo Thiago, até mesmo por se tratar de um longa, com duração de 121 min. Esses elementos podem ser entendidos como um processo interpretativo do diretor que busca mostrar pela linguagem cinematográfica; esta que tem por principal característica mostrar, se dar ao espectador, os não-ditos do poema. A linguagem poética é uma linguagem que muito diz em seu silencio. Justamente não diz muito para poder muito dizer. Assim “O vestido” de Paulo Thiago é um olhar deste artista para a obra de Drummond, um olhar extremamente denso e, por isso, interessante.
O filme inicia como na poesia, as crianças estão curiosas para entender a procedência de um belo vestido que se encontra pendurado. A mãe decide contar a história, resgatando suas amargas memórias. O marido havia se enamorado de uma dona de longe. Todas essas personagens ganham nomes no filme, nomes extremamente significativos. A esposa que tudo suporta como um anjo, que tudo espera e tudo suporta é Ângela. O marido que a abandona é Ulisses, nome este que é o arquétipo do marido que abandona sua esposa e a faz esperar ansiosamente por seu retorno, que parece nunca acontecer. A mulher que seduz o marido é Bárbara, a mulher que vem de longe, a estrangeira, a intrusa.
 Uma nova personagem, no entanto, é acrescentada ao trio do poema, se transformando em uma Quadrilha, poesia também de Carlos Drummond de Andrade. Essa nova figura é Fausto, primo de Ângela que sempre a amou, porém esta se apaixona por outro homem, Ulisses, que, apesar de lindo e proveniente de boa família, era um homem falido por sua incapacidade com os negócios. Fausto era um homem rico que veio da pobreza, e, assim como a personagem literária da obra de Goethe e de muitas outras obras alemães, Fausto faz um pacto com diabo, no caso com Bárbara, para alcançar o objeto de seu desejo, Ângela. Assim esse Fausto é também um homem divido entre a razão e o misticismo de uma paixão, por isso não acredita que possa conquistar a devota Ângela sem se valer de um artifício, que foi contratar Bárbara, uma atriz, para enlouquecer Ulisses.
Fausto amava Ângela que amava Ulisses que amava Bárbara que não amava ninguém. É justamente quando Bárbara passa a amar Ulisses que acontece uma reviravolta na história. Bárbara é uma mulher sedutora, dissimulada, uma atriz camuflada com seus olhos oblíquos de cigana, Capitu disfarçada, duas vezes representação, caindo em seu próprio jogo. Bárbara seduz Ulisses e, para isso, consegue cegar Ângela ao ponto de esta dar de presente para sua própria inimiga seu belo vestido, presente do marido, por considerá-lo devasso demais. Ulisses queria que as coisas fossem diferentes, por isso manda fazer um vestido que não condizia com a postura mais recatada da esposa. Ao presentear o vestido, Ângela fazia de Bárbara a mulher que Ulisses idealizava. Bárbara o enlouquece usando a roupa fatal e seduz o homem com beijos, porém ela não se entrega definitivamente depois de deixá-lo enlouquecido de paixão. Apenas o faria se Ângela, a mulher que acreditava no amor eterno, pedisse para ela ficar com seu marido por pena, para lhe aplacar o desejo.
Esse processo traçado por Pedro Thiago revela sua interpretação do poema de Drummond para o ato quase fantástico de uma esposa pedir à amante do marido para que dormisse com ele. Apenas um amor profundo e devoto, ideal, permitiria tal devoção e abnegação, um amor que realmente tudo suporta. Ulisses foge com Bárbara em busca de dinheiro em outro lugar, abandona tudo e todos por anos. Mas Ângela apesar da doença, da miséria, não deixa de ter esperanças, aguarda seu marido pacientemente e não cede às tentadoras ofertas de Fausto. Bárbara destrói a paixão de Ulisses quando começa a amá-lo, querendo tornar-se uma esposa com filhos. Ulisses cria uma repulsa por aquela figura que o tornou a pior das criaturas, um Otelo às avessas.
Assim Ulisses vai cumprir seu destino e volta para casa. Bárbara humilhada e destruída por um amor impossível, vai falar com Ângela, pede-lhe perdão e devolve o vestido, símbolo da sedução e que tanto sofrimento trouxe para ambas as mulheres. Nessa cena Ângela se comporta como uma mulher que deveras acredita acima de tudo no amor, por isso “Boca não disse palavra”. Ulisses retorna como se nada houvesse acontecido, nada diz também, havia passado por uma grande Odisséia e apenas merecia estar em casa com sua família.
Toda a obra do cineasta é permeada de muitas referências literárias que rodeiam principalmente a personagem Bárbara, seja do próprio Drummond, quando, por exemplo, Bárbara diz que “De tudo fica um pouco”, anunciando o que aquela trajetória poderia significar na vida de Ulisses, seja de Garcia Lorca, citado pelo Dr. Espanhol, Machado de Assis e seu Dom Casmurro, em peça encenada no filme que faz Bárbara sonhar com aquilo que ela realmente era, uma atriz, ou Dias Gomes e O pagador de Promessas, peça que Bárbara já havia feito e que a faz repetir todas as falas da esposa do pagador, na tentativa de desvirtuá-lo de seu caminho, numa cena em que ela e Ulisses assistem ao filme. “O Vestido” é muito mais que uma adaptação é um diálogo amplo do cinema com a literatura, demonstrando que esta relação não deve apenas ser observada ou exaltada na ideia de adaptação clássica, mas sim que as relações entre as produções artísticas de diferentes campos são capazes de um dialogismo muitas vezes até inimaginável para as pobres mentes sem muita atividade criativa, no entanto sempre revelada pelos Grandes.
Thais Carvalho Fonseca
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. O Caso do Vestido. In: Nova Reunião - 19 Livros de Poesia, José Olympio Editora, 1985, p. 157.

STAM, Robert. A Literatura através do cinema: Realismo, magia e arte da adaptação. tradução de Marie-Anne Kremer e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
_____________. Teoria e Prática da adaptação. In: http://www.periodicos.ufsc.br/index. php/ desterro/article/download/9775/9004. Acesso em: setembro de 2011.
THIAGO, Paulo. O Vestido. [Filme-vídeo]. Produção de Gláucia Camargos e direção de Paulo Thiago. Brasil, Columbia Tristar do Brasil, 2004. 1 Mídia em DVD, 121 min., color.son. Port..


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