terça-feira, 10 de abril de 2012

Resenha do texto: KOSHIYAMA, Jorge. O Lirismo em si mesmo: leitura de “Poética” de Manuel Bandeira. IN: BOSI, Alfredo. Leitura de Poesia. São Paulo: editora ática, 2003.


Tecer uma crítica a um trabalho de Manuel Bandeira significa inevitavelmente compreender o que é a poesia para a modernidade brasileira, ainda que a genialidade única do poeta faça de sua escrita algo peculiar na poesia brasileira, influenciando profundamente grandes poetas como Carlos Drummond de Andrade. Jorge Koshiyama teve o mérito de esboçar em sua crítica tanto o que significa “Poética” para a literatura brasileira da modernidade, como trazer à tona as qualidades poéticas do estilo pessoal de Bandeira. Quando assim o faz não deixa de confirmar sua própria interpretação sobre o lirismo nesta obra de Bandeira como algo que perpassa pela individualidade humana e pela inserção do humano em seu mundo cultural, algo que já demonstra na primeira parte de sua crítica com uma leitura de Hannah Arendt e a condição humana.
Jorge Koshiyama nos mostra que o lirismo de que fala o texto de Bandeira não se refere à mesma noção que se tem de poesia. Então não poderíamos dizer que “Poética” trata-se de uma metalinguagem? Na esteira do olhar de Koshiyama para esse texto, não poderemos olhar essa poesia de Bandeira nesse termo, ou, pelo menos, não apenas nesse termo. Quando Bandeira fala em lirismo, aos olhos do crítico, há uma compreensão do expressar de um eu, um Funil do Eu, como já poetizou Nauro Machado, algo um pouco diferente de poética ou poesia/poema. Esta se trata da criação e aquela do estudo sobre esta criação. Na lira há o criar obviamente, mas este criar é específico de uma experiência pessoal que está além das amarras de uma poesia formal, que hesita no seu ato criativo. A hesitação ocorre devido ao Eu estar deveras ligado às relações sociais que também lhe definem.
Para Koshiyama, Manuel Bandeira, assim como a poética da Modernidade, promove uma união entre poética e lirismo, pois criar, nesse equivalência, ou seja, ser poeta, fazer a lira, significará cantar a experiência do Eu, que, apesar de estar ligado em suas teias históricas, busca a si mesmo em seu ato criativo. Buscar a si mesmo depende de estar consciente do mundo, do social, para poder realizar uma cisão que possibilite uma consciência de si. Quando Bandeira diz “Estou farto”, ele demonstra seu saber sobre algo que ele deseja que não faça parte do seu eu. No contexto da modernidade, o eu, para se mostrar, deveria fazê-lo sem nenhuma casca, em si mesmo. Isso dependia de uma renúncia à retórica, as formas, ao pensar sobre o bem escrever através do dicionário, fugir dessas amarras o máximo possível através do inumerável e do indefinível.
O lirismo evocado por Bandeira é uma busca por esse Eu supostamente perdido, do pensamento selvagem, mítico, como podemos tentar pensar por Lévi-Strauss ou pela psicanálise e o inconsciente, o esquecido, e pensado por Kushiyama a partir da noção de Self de Jung. Esta compreensão refere-se a uma percepção do si mesmo como homem inteiro, total, unidade individual que poderia ser destacada de uma faceta social, passando por um funil. Por isso Manuel Bandeira elege para o seu querer – momento de sua poesia em que há metrificação, diferente do primeiro momento de recusa feita em versos livres, como bem destaca Kushiyama – o louco e o bêbado.
Essas duas figuras, desprovidas da razão, incapazes de hesitar, pois são, por si mesmas, incompletas, mas, diferente da embriaguez romântica, vivem sua plenamente sua incompletude. Como explica o crítico, estas figuras, para Bandeira, significam a possibilidade de uma busca de si, para além de um único tipo de social ditado. Por estarem à margem, seriam assim capazes de reinventar indefinidamente essa esfera a partir de uma experiência pessoal do mundo. Por isso para Bandeira o lirismo é libertação.

[...] compreende-se o lirismo como emoção, como pungência, mas, ao mesmo tempo, como um caminho em que se resgata a memória de uma unidade” (KOSHIYAMA, 2003, p. 93)

Assim o lirismo em si mesmo deve ser compreendido, através de Bandeira, conforme Kushiyama, como a poética do pessoal. Mas não apenas em Bandeira, mas na própria Modernidade Brasileira, como se observa em Mário de Andrade e Drummond que nos reconduzem “[...] a uma escuta do mito, do lendário e do inconsciente” (KOSHIYAMA, 2003, p. 95) sempre por uma compreensão da linguagem em suas passagens pela noção de poética e de lirismo, a poesia lírica como a escrita que nos nomeia.
Pensar nesse lirismo como música é algo quase que inevitável, tendo em vista essa noção de liberdade tão exaustivamente defendida por Manuel Bandeira. Assim Koshiyama se apóia em Alfredo Bosi que em O ser e o tempo na poesia, fala da dupla vocação da poesia moderna de caminhar entre “[...] a liberdade de ritmos e os processos e padrões formais [...]” (KOSHIYAMA, 2003, p. 98), aproximando a poesia da música.
A liberdade do lirismo poético caminha num limite. Ao criar o humano, o faz inserido-o numa palavra, na linguagem que se dirige a um leitor. Nessa relação realiza-se uma comunhão entre poeta e leitor através da poesia. Assim ainda que o lirismo em si mesmo tenha por noção de criação o resgate desse eu total, individualidade humana à procura do humano individual, sua inserção na e pela palavra faz a criação individual cessar por um momento para iniciar outro processo criativo: a busca da palavra por um leitor que a reinvente.
O poeta escreve para ser ouvido, para ser reconhecido pelo Outro, para inserir seu Eu neste grande oceano homogêneo que é o mundo. Por isso Koshiyama inicia sua crítica falando do registro fonográfico da poesia “Poética” na voz de Manuel Bandeira. Mais do que qualquer outro gênero, a poesia é escrita para ser recitada, proclamada, dita em voz alta para um ouvinte que se dá conta da existência dessa voz que fala/canta... dessa voz que quer relevar aos outros esse eu recluso, esse eu reinventado e que aguarda ser reinventado pela escuta alheia.
A crítica de Jorge Koshiyama, em sua profundidade reflexiva, faz justiça ao texto poético de Manuel Bandeira. O crítico diante dos grandes perde seu inglório papel de ditador de tendências, qualidades. Ler os grandes é para o crítico um momento em que ele mesmo se coloca em falência para mobilizar sua escrita também poética. Não há mais crítica. Há apenas uma tentativa de ser também um pouco poeta, pois assim se torna capaz de ao menos tatear no maravilhoso e ofuscante universo poético sem ser tomado por uma embriaguez ingênua, mas por algum delírio criativo que o faça adentrar na jornada pelo alcance da poesia do poeta grandioso, poesia esta que é ainda maior que o próprio poeta.

2 comentários:

  1. A crítica, a meu ver, tem a função de alargar o discurso poético. Ela expande e constrói um outro dentro da poética do autor, num funcionamento próprio da linguagem, a partir da leitura e da escrita crítica.
    Belo texto, Thais!

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  2. ‘‘O lirismo, que aproxima negatividade e reflexão, é a relação entre a expressão e a intimidade do si mesmo , de uma poética que é libertação,apenas por ser confidência, que nos abre a possibilidade de uma escuta, de acolhida e de comunhão com todos os seres vivos’’..gostaria de uma analise

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