quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Em algum lugar do passado, Richard Matheson



Muitos textos literários (dentre romances, contos, peças e outros) já foram motes para a construção de obras cinematográficas desde que o cinema foi criado. O cinema, com seu espaço intersemiótico, tem divulgado muitas obras da literatura clássica, antes desconhecidas pelo público que não possui acesso à leitura, por diversas razões que não nos cabe, em tal pequeno comentário, discutir. Em contrapartida, o cinema tem se mostrado um grande incentivo ao conhecimento da obra escrita que originou o filme adaptado. Um exemplo notório é o filme “O amor nos tempos do Cólera”, baseado no romance de mesmo título de Gabriel García Marquez, que aumentou consideravelmente a venda do livro.
A influência da literatura no cinema e vive-versa é, deveras, algo benéfico por permitir a busca de um pelo outro, divulgando obras clássicas e trabalhos de grandes cineastas. Porém deve-se ter acuidade com tal influência que, apesar de benéfica, gera, por vezes, alguns equívocos de apreciação e crítica. É sempre importante não nos esquecermos de que o cinema é uma linguagem e a obra escrita outra. Algumas comparações entre filme e livro podem tornar-se precipitadas se não compreendermos tal diferença.
Para ilustrarmos a questão, trazemos o exemplo do filme “Em algum lugar do passado” baseado no romance homônimo de Richard Matheson. O roteiro do filme é feito pelo próprio Matheson, com a direção de Jeannot Szwarc. As modificações do enredo do romance ao roteiro são notórias e marcantes. A fidelidade do filme ao livro ou deste àquele (situação esta mais rara) costuma ser um ponto positivo para a grande maioria dos críticos leigos ou não; e, claro, tal fidelidade se restringe à concepção que o leitor ou o telespectador faz da obra. Disto resulta uma avalanche de críticas contraditórias em lançamentos de obras adaptadas. No caso do filme em tela, as modificações feitas ao aspecto cinematográfico não são, a nosso ver, um ponto negativo, mas sim uma elogiável estratégia de construção de linguagem fílmica, elaborada pelo próprio romancista.
No romance de Matheson consta a estória do jovem Richard Collier que com 35 anos descobre um tumor incurável na cabeça e decide largar o jornalismo televisivo para viajar e escrever um livro. Em suas andanças se sente atraído a ficar no Hotel Del Coronado, nos arredores de San Diego. Lá, visitando o Salão de História, vê a foto de uma famosa atriz americana Elise McKenna, que em 20 de novembro de 1896, ali, naquele mesmo hotel, havia representado a peça The Little Minister. Richard, que nunca havia amado realmente, acredita ter encontrado um amor verdadeiro em uma mulher morta há quase vinte anos (ela falecera em 1953 e Richard está em 1971). O livro constrói seu enredo na tentativa de Collier, através de um processo de hipnose, voltar ao passado. Ele vive seu amor com Elise, porém ao final do romance não sabemos se tal estória foi fantasia ou realidade. Na obra escrita, Matheson cria o efeito da dúvida, confrontando o transcendentalismo amoroso e a realidade dos efeitos de uma doença (o médico de Collier alega que este passou por um delírio, efeito da doença).
No filme a estória é essencialmente a mesma, mas o efeito da dúvida não é construído. No roteiro construído por Matheson prevalece o transcendentalismo amoroso, pois a obra cinematográfica “Em algum lugar do passado” tem um fito de ultra-romantismo, o que é perfeitamente alcançado com a morte de Collier por amor a Elise e não devido a uma doença. No filme Collier não é doente. É um jovem cineasta que cansado do trabalho vai descansar no Grand Hotel e lá descobre a foto de Elise no Salão de História. Ele também vai ao passado por um processo de hipnose, mas o passado ao qual retorna possui uma grande relação com o presente do qual viera, o que deixa claro ao telespectador a condição de verossimilhança da hipnose dentro do contexto do filme. Isso ocorre, por exemplo, com o recepcionista do hotel que contara a Collier que vivia no hotel desde os cinco anos de idade e ele, Richard, pôde comprovar na sua ida ao passado. Outra prova interessante é o encontro de Collier com Elise antes da ida daquele ao passado. Quando jovem, Richard recebe a visita de uma anciã que lhe dá de presente um relógio e lhe pede para que volte para ela. Alguns anos depois Richard irá compreender tal fato. No romance escrito, tal relógio foi dado por Elise a Richard no passado, e, ao retornar ao presente, o médico atribui o relógio como parte do delírio de Collier.
Filme e romance possuem diferenças marcantes, principalmente no que tange à dúvida criada pelo autor no livro e não produzida no filme. Algumas outras mudanças menos relevantes também contribuíram para melhor elaboração da obra fílmica, como, por exemplo, o papel diferenciado do empresário de Elise nas obras, o encontro na praia do livro que se transforma num encontro no lago no filme, dentre outras. As mudanças identificadas entre as duas obras não as desmerecem em nenhum aspecto. A fidelidade não é algo que produz mérito em adaptações, deve-se buscar as finalidades da nova construção que é uma nova obra e não uma cópia de algo.

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